Gavet@ Móvel
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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016
terça-feira, 3 de novembro de 2015
DISCURSO ABERTO
Parece que a cada dia que se passa nós vivemos uma sociedade mais mecânica do que humana. Instituições de todos os gêneros priorizam mais suas visões do que as pessoas que a envolvem. Criamos a banalidade e a futilidade como algo primordial e belo; construímos imagem do perfeito e do ideal e rejeitamos com afinco tudo (e todos) que se opuserem ao mesmo. Parece que o humanismo foi deixado de lado uma vez por todas. Já não se vê mais uma pessoa como um ser com sua trajetória de vida, suas histórias, seus traumas e medos – não passamos de números. Tudo parece intolerável, inaceitável, incabível! Quem dera nós fossemos visto como realmente somos. Criaturas frágeis, com altos e baixos, e um punhado de razões que nos fazem ser quem somos e escolher o que escolhemos. Quem dera um pequeno mal infrator fosse entendido como alguém que passou coisas que não passamos e que, em algum instante da sua vida, acreditou que o crime fosse a única saída, o único caminho para que as coisas dessem certo para ele (e é completamente banalizado, ao invés de receber ajuda, como todos nós precisamos). Inclusive, a vida faz exatamente isso conosco: ela nos cobra aquilo que não nos deu. O sem cuidados tem que cuidar, o sem atenção tem que ser atencioso, o não amado tem que expressar amor, o não reconhecido deve reconhecer, e assim uma cadeia é construída entre as pessoas, um muro que se torna cada vem mais alto. Alguns pensaram: “O que aconteceu com ela para escrever isso? Uma decepção? Uma revolta?”, e infelizmente os brasileiros ainda pensam que uma reflexão deve vir somente depois de um acontecimento enfático. E para você que pensa assim, eu revelo que é possível as pessoas pensarem sem que lhes seja exigido uma motivação social ou pessoal. O que ocorreu comigo? 23 anos de observação sobre as pessoas. Sim, os olhos também podem ver o invisível – é questão de exercício. As pessoas têm se tornado cada vez mais frias, mais vingativas, imperdoáveis, sem compaixão. “O sofredor merece seu sofrimento. Ele escolheu assim!”. Ninguém mais olha nos olhos dos outros, não se pergunta sobre o passado, o interno, aquilo que cada um guarda (esconde), porque simplesmente não há mais interesse em vidas. Ninguém mais gosta de encarar o real, aquilo que as TV’s não mostram, os cantores não cantam, a publicidade não vende. O sério é uma chatice; ter que abrir os olhos, se importar com o outro. É fato, nós falhamos nisso. A presidente falha nisso, mas não menos que eu, você, o Papa, o pastor, o empresário, e qualquer ser humano. Contudo, se você se prestou a abrir esse texto e ler até o fim, nós devemos comemorar porque ainda existem pessoas que se interessam mais por discursos chatos (mas sinceros) do que fotos felizes (mas totalmente falsas). Sim, são falsas! Todos nós sabemos que por trás de cada sorriso de cada mural existe alguém de verdade, que sai para o trabalho/faculdade, enfrenta suas correrias do dia a dia, e no final de tudo, ela deita em sua cama e pensa coisas que ninguém imagina. Luta contra seus próprios leões, suas dificuldades, suas tomadas de decisões, seus ressentimentos, suas fraquezas, suas dores solitárias. Vai soar estranho, mas é indelével: AS PESSOAS SÃO FRACAS! Pode acreditar! Por trás de cada um existe um preço, um limite, uma área onde eles certamente não aguentam e cedem. Sim, eles cedem, perdem o controle, a pose, a dignidade, o “correto”, o “belo”, o imaculado. Inclusive, penso que é neste momento em que as pessoas são quem sempre foram. Não existe uma mudança miraculosa neste tipo de processo. Já viu alguém se perder com o poder, mudar com a fama, descontrolar-se com uma “tentação da carne”? Isso se chama PESSOA, com um passado, presente e futuro – ela sempre existiu. E sinceramente, nós nunca vamos conseguir fazer algo que o próprio Deus, nosso Criador, já não tenha imaginado que faríamos, de bom ou de terrível. Contudo, eu creio que nunca foi plano do Mesmo fazer com que essa vastidão de humanos vivesse seu mundo isolado e fantasioso. Se assim fosse, Ele não teria requerido a multiplicação dessa espécie fascinante. É claro, somos fascinantes! Não do jeito que se pensa hoje, não da forma que as revistas de moda vendem um corpo “perfeito”, e nem do jeito que a MTV vislumbra uma vida confortável de fama. Nós somos fascinantes no nosso jeito de viver e pensar. Nas pequenas coisas que podemos fazer quando realmente queremos fazer. Aquilo que somos quando ninguém está olhando, quando não há aplauso ou gratificação, só você e você mesmo. Porque lá no fundo, talvez bem lá dentro, nós somos pessoas boas. E isso vai muito mais do quer curtir um vídeo de catástrofe ou uma foto de crianças com lepra para se dizer interessado no assunto. Tem a ver com o que fazemos pelos outros de verdade, a atitude acima do reconhecimento. O fazer sem que seja pedido, o estender de mão mais pré-histórico que a Terra já viu – isso sim é fascinante. Afinal, este é você, esta sou eu, aquele é o cara do estacionamento, do elevador, da portaria, do palco, do púlpito, do trono. É esta disposição de levantar e fazer de novo, de acreditar quando ninguém acredita, de lutar quando ninguém luta, de morrer fazendo o pouco para que um dia alguém possa fazer o muito. É assim que as grandes conquistas acontecem, são sementes. Hoje o meu texto não vai mudar a vida de ninguém. Você vai viver seu final de semana do mesmo jeito, fazer as mesmas coisas, ser você de sempre (talvez eu também). Porém, uma palavra foi lançada, e dizem que palavras não podem voltar atrás, então concluiremos que elas serão eternizadas, hoje, nesse Feed. No entanto, talvez possa ser feito, aqui dentro (mente e coração – porque trabalham juntos). Talvez eu senti de dizer isso para responder suas dúvidas, minhas dúvidas, ou até mesmo, sejam a resposta de alguém. E concluindo (finalmente), eu diria que alguém ainda acredita em nós, seja quem for. Acredita na nossa capacidade de fazer diferente e melhor para com o nosso semelhante. Mesmo sendo fracos, corruptíveis, falhos, malvados (ás vezes), ainda podemos ser fascinantes – não esqueça. Podemos ser e fazer muitas coisas boas enquanto vivos, contudo, somente se quisermos.
terça-feira, 14 de abril de 2015
Calouros - Eles estão prontos?
Passar no vestibular é um dos grandes sonhos e objetivos de um adolescente de 17 anos nos dias de hoje. E para isso, não polpam esforços para alcançar essa meta: cursinhos, aulões, feriados em sala de aula, noites de insônia, noites de aula com sono, etc. Mas será mesmo que este sonho é o deles? Um jovem que cursa o terceiro ano se depara frequentemente com a pergunta: "Que curso você vai prestar no vestibular?", e mesmo sem muita idade, eles devem decidir qual a profissão que irá reger o resto de suas vidas. E de onde vêm isso? A maioria dos pais desses adolescente não tiveram uma oportunidade melhor de estudo como temos atualmente, podendo optar por vários tipos de bolsas e financiamentos. E muitos deles, exercem uma cobrança árdua na vida dessas crianças. Por serem totais fiadores da vida do filho, os pais muitas vezes, se sentem no direito de opinar na vida estudantil do mesmo - com a melhor das intenções, é claro. É prazer para qualquer pai e mãe ver seu filho aprovado em uma boa instituição de ensino, e dali 5 anos vê-lo levantando o canudo e pendurando o diploma de graduação na parede da sala. Assim sendo, a sociedade em sua totalidade obtém uma mesma linha de pensamento, e impõe suas cobranças rotineiras e determinantes, como a idade para de casar, para se ter filho, para comprar um carro, etc. Todas essas normas invisíveis não se pautam em leis jurídicas, no entanto, em leis pseudoéticas e morais de convívio. Mas até onde isso deve prosseguir? Afinal, onde está essa sociedade quando esses calouros inexperientes e imaturos ingressam realmente na vida acadêmica? Muitos desses adolescentes, se não a maioria, enfrentou uma jornada de cursinhos e aulas intensivas nas melhores e mais caras instituições de suas cidades, custeados pelos pais sonhadores citados acima, quando na verdade, poucos deles realmente frequentaram essas aulas. Fato que revolta em muito aqueles estudantes de baixa renda, que passaram a vida toda em colégios públicos e cursinho noturno pago com sua própria jornada de trabalho. Mas será mesmo que 17 anos seria a idade ideal para se escolher uma profissão? Segundo uma matéria da revista Abril (2011), a evasão escolar tem crescido no Brasil, e cerca de 900 mil estudantes por ano não terminam a faculdade. “Suponhamos que um curso comece o ano com 50 alunos. A escola tem um gasto, que chamamos de fixo, que vai desde a contratação de professores até a compra de material para as aulas. Se no ano seguinte 10 alunos deixam de frequentar o curso, a faculdade acaba perdendo em torno de 100 mil reais de investimento. Agora multiplique isso aos 900 mil estudantes que desistem, são 9 milhões de reais de prejuízo”, afirma Oscar Hipólito, membro de Instituto Lobo. Isso ocorre por diversos fatores, e para os com pouca condição financeira, pode se atrelar com a dificuldade em manter os estudos por falta de recursos capitais. Ainda assim, muitos alunos desistem por falta de interesse com a matéria, método de ensino, ou insatisfação com o campus da faculdade. É notável o comportamento infantilizado dos alunos de primeiro período, a maioria recém saída do terceiro ano, por volta dos 18 anos incompletos. Falta seriedade na receptação de conteúdo dos professores, falta responsabilidade com prazos e datas para entregas de trabalhos, falta educação com a presença do professor na sala de aula, falta competência para desenvolver projetos bem elaborados, falta seriedade no comportamento em sala e por fim, falta a visão madura de estudar projetando a futura carreira. Não são poucos que ingressam em cursos por opinião de terceiros, e acabam fazendo o que não querem, logo, fazem o curso de qualquer jeito. Muitos não se formam, ou os que conquistam o diploma, se tornam aqueles profissionais medíocres e sem conteúdo, que passaram ano após ano com a piedade dos professores, e nas costas de alguns colegas de turma. Mas de quem é a culpa? Dos pais, da sociedade ou do aluno? É certo que todos tem grande porcentagem de responsabilidade no assunto, já que os três são partes diretas nesse resultado. Sendo assim, cabe aos três formarem meios de corrigir isso. As escolar deveriam apresentar, desde cedo, propostas para aguçarem os alunos a uma vida mais responsável no quesito profissional, os preparando para uma vida acadêmica e uma escolha no futuro. Afinal, faculdade não é passaporte para uma vida bem sucedida. Muitos conquistam cargos elevados nas empresas sem terem diploma de graduação algum, mas por simplesmente fazerem o que gostam, e fazerem com excelência. Cabe ao jovem a decisão de fazer ou não faculdade aos 17 anos, em que momento entrará em uma, e qual o curso a ser prestado. Isso já geraria um peso de responsabilidade a eles. Os pais deveriam ter a consciência de que o futuro do filho NÃO é a chance do pai realizar seu sonho frustrado do passado. Aquilo que parece bom aos olhos dos pais, isto é, que seja uma profissão rentável e com vasto mercado de trabalho, pode não encaixar com a personalidade do adolescente, e fazer com que este perca muito tempo e dinheiro até perceber isso - se é que pode. E por fim, os jovens deveriam ser mais conscientes de suas escolhas, o que se torna muito difícil, pois o mundo universitário é regado de obstáculos para se ingressar, e acaba sobrando apenas para aqueles que tem financiadores em suas vidas: pais, avós, tios, ou qualquer pessoa que banque sua jornada pré-acadêmica e acadêmica. Fica difícil criar maturidade e responsabilidade quando se cresce cercado de pessoas que irão tomar decisões e escolhas árduas para você, e ainda por cima, custearem tudo o que virá pela frente. É fundamental para o jovem que ele estude, mas também que ele trabalhe. O trabalho é uma das experiências da vida do ser humano que mais exige disciplina e determinação, e se torna essencial para a vida do adolescente passar por isso - segundo a lei orienta, certamente. Tendo isso, não podemos esperar nada mais do que ótimas notícias sobre a redução da evasão escolar, e de um mercado de trabalho cheio de profissionais sérios e qualificados. Afinal, isso é realmente ser bem sucedido: fazer o que gosta, e da melhor forma. Jovem, leve a sério seu papel na sociedade!
terça-feira, 24 de fevereiro de 2015
O Peru
Banheiros limpos, quartos arrumados, sala
aspirada, vidros polidos, quintal varrido, sobremesa na geladeira, peru no
forno... Meu Deus! O Peru! Dona Saúde não sossegava até que tudo estivesse
completamente de acordo. Era planta para regar, feira pra fazer, roupa para
passar e guardar, armários para organizar, e tudo antes de as visitas do norte
chegarem.
Todo ano era isso: a família toda reunida na
casa de dona Saúde. Pudera! Era a maior casa de todos os parentes. Mas não
pensem que dona Saúde era dondoca, nada disso. Era uma senhora trabalhadora
desde de a mocidade em casa de família, para limpar e cuidar de tudo. Cresceu
na arrumação, e da arrumação conquistou seu pedacinho de chão, e depois, o
sobradão no quarteirão da Rua da Paz. Tremendo orgulho dela e do marido, que
também dava duro nas encanações desde que seu pai era vivo para lhe
ensinar.
Dona Saúde gostava de ver a limpeza tinir
onde quer que passasse. Já trabalhou de camareira em hotel de luxo e até em
cortiço; em restaurante cinco estrelas e em padaria de bairro simples; em
bancos e até em lotérica de bicheiro. O fato era que ela não dispensava serviço
duro quando o assunto era encarar a sujeira. Menina nova fazia vergonha de sua
força e disposição na esfregação. Dobrava os joelhos ao lado do balde e saía a
tirar as manchas, fosse como fosse.
A campainha tocou lá de fora. Chegaram! E lá
entravam a irmã mais velha, o cunhado falante, os três sobrinhos em idade de
escadinha, sendo o mais velho da idade de onze anos. Com o peru ainda
marinando, a anfitriã puxava cadeiras pela sala para todos se acomodarem,
exceto as crianças, que já haviam subido para a sala de tevê, onde fariam a
maior algazarra já prevista.
E logo iniciava-se assunto: o primeiro dente
mole do sobrinho mais novo, a nota baixa em matemática do mais velho, a troca
de carro do cunhado, e as velhas dores nas varizes da irmã. Ouvia tudo com um
interesse santificado, e depressa corria para espiar o peru assando. Não
demorava, e mais pessoas chegavam: a irmã do meio, o cunhado cristão, o
sobrinho mais velho com a nova namorada loira, a sobrinha gordinha e mal
criada, e o poodle de latido ardido que nunca ficava em casa longe deles.
Daí era aquilo: o pessoal que já estava
sentado se levantava para cumprimentar os que haviam chego. Estralo de beijos
para as mulheres e barulho de palmas nas saudações masculinas. O povo chegava
para lá nos sofás e mais cadeiras eram incluídas na roda. O casalzinho jovem
sentou-se num canto desapercebido para cochicharem suas malícias da idade,
enquanto os mais velhos mimavam o cão agitado e célebre no meio da sala. A
conversa ia ficando mais alta a cada momento: era a novidade da casa de praia
da irmã mais nova, o convite do cunhado para pregar em uma igreja fora da
cidade, a dieta rígida da filha fofinha, e o casalzinho que já pensava em casar
– pelos menos, era o que o pai queria que acontecesse logo, visto o fogo dos
dois.
Dona
Saúde ouvia tudo com ar de novidade e carisma, e com um pé na sala e outra na
cozinha, dava tenção a suas visitas. Mais uma vez a campainha. Chegaram os
vizinhos de dona Saúde. A senhora Marta, que também era madrinha de seus
filhos, já era conhecida de todos. A novidade era o marido novo, ar de gringo,
metido a muambeiro do Paraguai. E a cena de outrora se repetiu mais uma vez: o
casal desfilou diante de todos para os cumprimentos ao som ardido do poodle, e
logo tomaram lugar perto do casalzinho, que sossegaram um pouco os chamegos
escondidos.
O cheiro do peru atiçou a fome de todos
quando a anfitriã o retirou do forno. Seu marido, que havia acabado de chegar
do trabalho em plena véspera de natal, passou por todos com acenos rápidos e
logo subiu para um banho deveras necessário. As filhas de dona Saúde, que em
todo esse tempo se encontravam diante de espelhos, guarda-roupas e secadores,
desceram para juntarem-se aos outros. Duas meninas-moças: Júlia e Gabriela, as
duas em fase de se preocuparem mais com os cabelos do que com os afazeres da
casa. A pobre Saúde já nem reclamava mais com elas, era perda de tempo. Nessa
idade elas não ouviam nada do que lhes era falado, e qualquer assunto que não
as agradassem, eram duas semanas trancadas no quarto – deixe estar.
E mais uma vez a campainha tocou, mas desta
vez uma das filhas, milagrosamente, se propôs a atender acompanhada do cachorro
sorrateiro. Talvez por influência do velho e famigerado espirito-natalino. Era
a tia do meio com o bebê recém-nascido nos braços. Quando chegou na sala, a
parentada pulou nela como urubus à carcaça, exceto o casalzinho no canto do
sofá, que aproveitaram a distração para trocarem fungadas do pescoço. Todos
queriam ver o novo membro da família Souza pela primeira vez. O poodle ciumento,
latia e latia para o bebê, que nada entendia do que estava acontecendo. A mãe
da criança já estava habituada a ter a atenção roubada por seu filho, mas não
havia importância, pois ele era realmente importante para ela, que era a única
irmã solteira da família.
Assim que o senhor Manoel, anfitrião da
casa, desceu de banho tomado e de camisa nova, o peru foi servido na mesa de
jantar. Alguém deu um berro para as crianças descerem para comer, e aos poucos
todos foram se encaixando em volta da mesa de seis cadeiras, com mais duas
colocadas nas pontas para caber todos. As crianças fizeram seus pratos e
sentaram-se no tapete da sala com o tótó, os mais velhos ficaram à mesa mesmo,
e os jovens foram para o sofá. Os mais velhos riam e tomavam vinho suave,
exceto o cunhado cristão e sua mulher, eles tomavam coca. As crianças lambuzavam
os beiços de suco artificial de laranja, e os jovens iam de espumante de maça
nas taças.
Os mais velhos falavam dos outros parentes,
dos que faleceram, dos que casaram, dos que se separaram, dos que empobreceram,
e dos que enriqueceram e sumiram. Os jovens falavam das novas marcas de
smarthphones e tiravam fotos com as taças para postarem em suas redes sociais.
E as crianças, as crianças eram apenas crianças. Comiam de boca aberta, davam
porções da comida ao cachorro, e amontoavam-se uns nos outros. O bebê chorava
baixinho de vez em ora, apenas para querer ser lembrado nos braços da mãe, e o
peru, o peru já estava todo esfolado no centro da mesa.
Depois
da sobremesa de chocolate, onde o tapete de dona Saúde adorou provar um pouco
por bondade das crianças, todos juntaram seus pratos e copos e deram-se por
satisfeitos. As mulheres foram para a cozinha para ajudar na louça, os homens
sentaram-se para ver o que conseguiam achar na tevê, as crianças voltaram para
a sala no andar de cima, as filhas de dona Saúde e a prima gordinha foram para
o quarto conversarem, e o casalzinho ficou na garagem para ver os poucos fogos
de artifício que estouravam-se pelo bairro, já que todos estavam passando o
natal nas praias do estado.
Assim que terminaram a primeira arrumação, a
vizinha-comadre de dona Saúde voltou para sua casa com o marido, mas o trabalho
ainda não tinha acabado. A família toda dormiria ali naquela noite. E dai foi
aquele vuco-vuco de colchões e cobertores sendo levados pelos quartos e pela
sala para acomodação de todos. As meninas dormiriam todas no quarto das filhas
de Saúde, isto é, Julia, Gabriela, a tia mais nova com o bebê, a prima gordinha
e a namorada nova de seu irmão, o que deixou o casalzinho um tanto insatisfeito
- mas paciência. Os casais dormiriam nos quartos de hóspedes, e as crianças
dormiriam junto com o poodle hiperativo e o namoradinho abandonado no andar
debaixo.
Levou mais de três horas para que todos se
ajeitassem e pegassem no sono. Quando dona Saúde deitou-se em sua cama,
assustou-se com a hora: quatro e quinze da madrugada. Como passou rápido! Dali
até a manhã seria apenas um cochilo para a preparação do café da manhã. Dito e
feito: dona Saúde mal dormiu. Logo antes de amanhecer, o cheiro de café passado
já enchia o sobradão. Aos poucos, cada um foi despertado com o aroma e com o
barulho do bebê e do poodle. Mesmo com a fartura da noite passada, todos se
empanturraram com os quitutes, bolos e pães de Saúde.
E assim toda a rotina se repetia: as
refeições, as arrumações, as conversas, as refeições, as arrumações, e as
sonecas... O povo ficou ali por uma semana, o que escureceu ainda mais as
olheiras de dona Saúde, que caía de sono pelos cantos quando ninguém notava.
Porém, o grande dia chegou, todos iriam embora. De novo aquela confusão de
malas sendo levadas para os carros, crianças correndo pela casa, potes sendo
cheias de brevidades para a viagem, o bebê chorando, o poodle arrastando os
chinelos pelos cantos, os colchões e cobertores voltando para seus lugares.
No portão foi aquela agitação e conversa
alta. Todos se abraçando e desejando bom retorno, além de marcarem outro dia
para se reunirem. Aos poucos os carros iam se enchendo de pessoas e coisas, e
tomavam seu caminho, até que ficassem somente os quatro em frente ao sobradão:
mãe, pai, e as filhas. O senhor Manoel foi direto para seu jogo de futebol na
televisão, Júlia pegou seu notebook e voltou para o quarto, Grabriela foi tomar
um banho para escovar o cabelo para o dia seguinte, e dona Saúde... Dona Saúde
sentou-se saudosa pela primeira vez naquela semana. Esticou as pernas na
cadeira e deu uma olhada no inchaço em que elas se encontravam, motivo da
correria frenética das visitas. Bebericou mais um pouco de sua xícara de café
deixada há pouco e olhou para a casa vazia e silenciosa.
Levaria mais de uma semana para casa voltar
ao seu estado real de limpeza, mas dona Saúde estava feliz. Havia se desgastado
tanto! Noites mal dormidas, dinheiro e mais dinheiro em mercado para dar o que
comer aquele povo voraz, horas de frente ao fogão em cada preparo, roupas e
mais roupas lavadas... Mas no fundo, ela sentia prazer em ter todas estas
coisas para fazer. E mesmo sentindo o corpo dolorido, como se um trem a tivesse
esmagado, faria tudo aquilo de novo. Levantou para levar as louças à pia, e
enquanto as lavava mirando a janela da cozinha, sentiu falta de toda aquela
gente.
Macarrões
Era uma tarde de Sol quando a dona Cláudia
ganhou os dois: Ketlyn e Chico. Ketlyn era toda amarela clarinho, de uma
delicadeza quase inglesa, como seu nome dizia. Chico já era mais robusto, com
tons mesclados de preto e branco que lembravam uma galinha d’angola. Mas não
era galo, era pato. Os dois vieram de pressa sem muito destino para o quintal
da dona, um cantinho de entulho ao lado da casa dos fundos. Quando chegaram no
pedaço, a dona Cláudia tratou de arranjar uma grande bacia com água para os
bichinhos se banharem tranquilamente naquele verão. A bacia não era lá das
maiores, afinal era uma bacia e não uma piscina. Os dois nadavam pertinho um do
outro, mergulhavam o bico no fundo e estendiam o pescoço deixando a água
escorrer no resto do corpinho oviparo.
Eram muito unidos. Quando a dona olhava pela gradezinha, lá estavam os
dois lado a lado remexendo as cabeças inquietas.
Os netos de dona Cláudia tratavam os patos
como cães. Puxavam-lhe os rabos, festavam as penas das cabecinhas e saiam
correndo pelo quintal. Os pobres bichos enfurecidos perseguiam as crianças com
as asas batendo no chão, e quando alcançavam as barras das caças faziam um
estrago. Traquinagens à parte, os pequenos gostavam daqueles patos. Nas tardes
fora da escola, colocavam-se a caçar minhocas pelo quintal para alimentar os
bichos. Um dia levaram horas na tarefa até encherem um vidro todinho de
minhocas gordinhas e suculentas, mas assim que viraram o vidro no chão as
danadas enrolaram-se uma nas outras até virarem um emaranhado só, então Chico
abocanhou tudo em uma bicada só e Ketlyn ficou só olhando a cena de papo vazio.
Além de minhocas, o prato favorito dessas
aves era macarrão, devido a grande semelhança na aparência e textura. Assim que
dona Cláudia já ia guardando as panelas do almoço, a garotada agarrava a sobra
e levava para o quintal. Desta vez já haviam aprendido a lição, primeiro
serviam Francisco e depois Ketlyn, e cuidavam para que um não roubasse a comida
do outro.
Porém um dia, também belo e ensolarado, as
crianças foram até o cantinho dos patos. Olharam pela grade enquanto se
aproximavam, e estranharam o fato de Chico estar sentado sozinho à frente. Com
olhar furtivo eles perceberam Ketlyn sentada sozinha logo atrás em sua casinha
feita com um sofá velho de dona Cláudia. A fêmea estava com os olhinhos
fechados e com o corpinho todo encolhido, e as crianças alegres logo pensaram
que talvez ela estivesse botando ovos. Chegaram mais perto, mas Ketlyn não
acordou. Uma das crianças pôs a mão de leve em seu corpo, fazendo com que ele
caísse para o lado, duro, gélido e sem vida.
As crianças se olharam assustadas, e
rapidamente levaram a pata para fora. Dona Cláudia logo foi chamada para tomar
conhecimento do ocorrido. Enterraram a bichinha no quintal mesmo, e todos
lamentaram a perda. Não mais que Chico, é claro. O pobre pato mudou da água para o vinagre,
sim, pois uma amargura tomou conta daquela ave. A bacia cheia d’água já não lhe
fazia a alegria, ficava ali parada só juntando inseto e sujeira, então a
retiraram de lá. O pato entristeceu de um jeito que até parecia gente. Já não
ficava mais sentado de frente a grade, mas achou um pequeno buraco no assoalho
da casa e enfiou-se por lá. Custava muito que ele saísse. Nem minhocas
gordinhas, nem macarrão fresquinho o convenciam de aparecer para fora. De vez
em quando uma das crianças se enfiava no buraco para vê-lo, ou então trazê-lo
um pouco para fora.
A verdade é que Chico já não era o mesmo.
Aguentou mais um ano de vida, cresceu, mas não viveu. Era um belo pato, de bico
longo, asas grandes, pescoço firme e penas mescladas, porém já não tinha a
vivacidade de antes, enquanto sua bela companheira vivia. Não se soube o motivo
da morte dela. Talvez algo estranho que comera, talvez uma pisada sem querer na
hora de brincar com as crianças, talvez uma doença que só o veterinários
saberiam. Mas se foi, e era só o que sabiam. Não demorou até que Chico se
juntasse a ela, em sua mesma covinha.
Houve um dia que as crianças deram por falta
dele. Já fazia tempo que não saía, mesmo quando chamavam incessantemente na
beira do buraco do assoalho. Então elas entraram lá de novo, e o puxaram gelado
para fora. Desta vez a perda não foi tanto, já que o pobre bicho tinha se
entregado aos poucos, e todos o perdiam aos poucos em cada dia. Foi melhor
assim, todos pensaram. Pois aí ele não sofreria mais sua solidão. Na cabeça das
crianças havia um céu feito para os animais. Talvez sem crianças para lhes
importunar e aborrecer... Talvez. E lá os dois estariam agora, comendo minhocas
bem mais gordinhas, e pilhas de macarrões bem mais fresquinhos.
I-Phonso
Afonso sempre amou mais a tecnologia do que
a qualquer outra coisa. Mais ainda do que sua própria namorada - motivo do qual
fez dela ex em apenas dois meses. Pudera! Afonso não largava seus apetrechos
tecnológicos por onde quer que fosse. Era tablete, smarthphone, notebook, PSP, ou
derivados, ele nunca estava sem eles. Corria mais atrás de tomadas do que de
garotas, e isso sempre foi assim. Seu apelido entre os amigos, poucos que
tinha, era I-Phonso, e ele até achava
graça nisso.
Trabalhava sem parar até sanar seus vícios
irrefutáveis de alcançar o avanço da tecnologia. Trocava de aparelho celular a
cada quatro meses, e quando ouvia que um novo saiu em alguma parte do mundo,
ele vasculhava terra e céus para conhecer o bendito aparelho. Sabia tudo sobre
todas as marcas, preços, qualidades, pixels,
memórias, baterias, softwares,
invenção, renovação, e o que mais tivesse a ver com isso. Seu quarto era
cercado de bugigangas eletrônicas, revistas e cd’s sobre o assunto. Era um amante
incondicional!
O que ele fazia com seus antigos aparelhos?
Bom, no começo ele guardava todos como preciosidades, até perceber que não
havia mais lugar para tanta sucata, quer dizer, nem tão sucata assim. Depois
ele tentou passar os aparelhos para familiares próximos, como sua mãe Zélia,
que odiou a invenção do tal touchscream e
se negou a continuar trocando de celulares com a mesma velocidade do filho.
“Isso não é coisa de gente normal”, dizia ela. Sem falar que a pobre senhora
também acabava cheia de aparelhos sobressalentes pela casa toda, somente porque
seu filho não queria se desfazer de vez daqueles “trécos”.
Foi depois de muito tempo e com muito custo
que I-Phonso, digo, Afonso aprendeu a se divorciar de seus antigos pertences
eletrônicos. Experimentou vender um mouse
usado, depois um fone de ouvido, uma caixa de som, e assim ele foi vendo
aquele velho quarto entulhado se esvaziar. Quando vendia alguma coisa, sentia
uma estranha sensação de indiferença, e assustou-se com isso. No começo era
estranho, mas ao poucos passou a ter prazer em fazê-lo. Sim, pois sua vida, que
até então se limitava a relações sociais virtuais e superficiais, ganhou mais
atratividade com as ligações e encontros com os compradores.
Conhecia muitas pessoas a cada venda, e com
algum lucro entrando, lhe ocorreu a ideia de abrir um site de vendas. Dona
Zélia, que já notara a melhora de comportamento do filho tímido, reprimiu a
ideia e sugeriu que a loja existisse “de verdade”, lá na garagem. Assim o filho
veria pessoas “de verdade” e levantaria a bunda de frente daquele computador.
Afonso sentiu medo no começo, mas com a mãe lhe ajudando a separar as peças e a
organizar a garagem com as estantes transbordando, ele criou coragem de mandar
fazer uma placa: VENDA E REVENDA DE ELETRÕNICOS.
Foi um sucesso desde o primeiro mês. Afonso
descobriu que havia muitas outras pessoas como ele, cheias de coisas acumuladas
e sem uso, então não se sentiu mais sozinho. Os clientes levavam aparelhos
levemente danificados para verem o que conseguiam, e como Afonso sempre foi
metido a entendido do assunto, podia consertar boa parte deles. Os que ele não
dava cabo do serviço, mandava para um novo amigo que fez na loja, e os dois
dividiam o lucro. Com os negócios crescendo, a loja ficou pequena e mudou-se
para um local mais centralizado. Àquela altura sua obsessão pelos aparelhos já
havia sido sanada pelas descobertas que fazia em sua loja.
Com tantas mudanças em sua vida, até a
Lurdinha, sua ex-namorada, resolveu procura-lo novamente quando soube. A moça
quase caiu de costas ao ver que o rapaz estava mais magro, ativo, comunicativo,
e ... belo. Devido aos fatos, não demorou muito para que eles reatassem. A volta
foi uma mão na roda para Afonso, que além de sentir falta da garota, também
estava precisando muito de uma ajudante no batente.
Lurdinha tratou logo de arranjar um nome
decente para o estabelecimento, quer dizer, talvez não tão decente assim:
I-PHONSO ELETRÕNICOS. Também organizou a papelada para a aquisição do CNPJ,
além de dar um bom toque feminino no espaço, que agora também vendia peças
novinhas em folha.
Quando a loja fez um ano de aniversário os
dois noivaram. Dali três meses Afonso começou, enfim, a tão sonhada faculdade
de Tecnologia de Informática. Na verdade, este sonho era mais da senhora Zélia
do que do próprio rapaz, mas vinha muito a calhar com a ampliação de visão
empresarial. Depois que casaram, os dois deram um duro danado nas vendas até a
situação ter se estabilizado. E quando pensaram que já estavam tranquilos, o
senhor Afonso virou papai de gêmeos: Alice e Luigi.
Com a maternidade de primeira viagem,
Lurdinha deixou os negócios para cuidar dos pequenos enquanto Afonso treinava
novos funcionários de vendas. A vovó Zélia dava uma mão e às vezes até duas
para ajudar o filho com a loja e com as tarefas da paternidade. No fundo a
velhinha não imaginava o quanto o filho havia mudado tanto para melhor. Quem
diria que aqueles “trécos” tinham sido o mal e ao mesmo tempo o bem para o
filho. “Acho que ele se achou na vida”, contava às vizinhas com o peito cheio
de orgulho. Não que ela tivesse mudado sua ideia sobre a tecnologia, e nem que
tivesse dominado o touchscream, mas
ao tempo que aquelas bugigangas ia mudando pra melhor, a vida de todos ia
seguindo junto também. E mesmo que sua memória não fosse tão boa como aqueles
“trécos”, ela iria registrar cada segundo de sua bela família: Afonso,
Lurdinha, I-lice e L-oading.
Seu nome era Sophie, e ela bem sabia que não
era um nome comum.
Irritava-se
toda vez que trocavam as letras: “Oi, Sofia!” “Como vai Sôufi?”, porém no fundo
ela adorava ter um nome diferente. Porque na verdade ser diferente era o que
ela era de fato.
Suas roupas nunca combinavam. Usava somente
aquilo que lhe parecia confortável, ainda que um par fosse de bolinhas e outro
fosse xadrez, ainda que fosse frio e o sapato fosse aberto, ainda que estivesse
calor e a blusa de lã fosse extrovertidamente colorida, ainda que pela manhã
não passasse a escova nos cabelos, mas que conseguisse se parecer com aquela
moça sorridente do pôster colado na parede de sua irmã mais velha, uma tal de Janis
Joplin. Nome este dado também a sua boneca favorita.
Na casa todos já conheciam seu tipo. Era só
aparecer algo incomum e todos cantarolavam: “Coisas de Sophie...”. Um tubo de
cola bastão com uma rodela entre a tampa virava um mexicano, o espelho embaçado
depois do banho virava diário, um chicletes mascado se tornava uma lesma colada
na prede detrás do sofá, as barras cortadas de suas calças velhas viravam roupas
para seu cachorro Tigrão, as escovas de dente na pia conversavam viradas umas
para as outras, e a casa toda se tornava alvo de sua imaginação.
Quando percebia estar sozinha em casa corria
para a cozinha. Adora brincar de “misturinha”! Procurava todos os grãos dos
potes e os misturava em um pequeno copo. Também assim fazia com todos os pós,
cremes e líquidos. E para quê? Na verdade para nada! Ela ficava curiosa para
saber qual seriam a textura e o cheiro que todas aquelas misturas dariam, e normalmente
era uma aparência gosmenta e malcheirosa. Claro que Dona Regina não poderia nem
sonhar que essas traquinagens aconteciam em sua ausência, ela não suportava a ideia
de brincadeiras com comida, ainda mais no preço que se achavam nos supermercados,
e dizia: “Você acha que sou sócio do mercado, menina?”.
O fato era que Sophie nunca foi uma criança
comum. Ela não ria dos desenhos animados, afinal ver um bichinho se machucar
não lhe dava ares de graça. Coisa que gostava eram telejornais e noticiários,
comerciais nem se fala! Sophie era muito observadora e inteligente, embora a
matemática lhe dissesse o contrário. Matemática com ela era um problema muito
sério. Os números lhe torciam os miolos, e as fórmulas eram russo puro. Além
disso, achava inaceitável que só porque alguém disse que A + B é igual a C,
todos tivessem que achar a mesma coisa. Na tv aprendia várias palavras difíceis
e saia por ai a repetir. Sentava no sofá com seu dicionário velho e saboreava novas
formas de falar. Na sua pouca idade já falava coisas que outros amigos não
sabiam nem escrever. Sophie amava escrever.
Era por isso que ela amava as artes, de todas
as formas. Fosse história, fosse poesia, fosse desenho ou pintura, fosse dança
ou fosse música, ela podia sempre reinventar! Quando ia à casa de sua amiga
Fernanda usava muito esse seu lado artístico. Em meio aos grandes cômodos e
pátios do casarão rico elas corriam e imaginavam coisas. Ora eram donas de
casas cuidadoras de filhos, ora eram médicas veterinárias correndo atrás do Tigrão,
ora eram cantoras e atrizes que se apresentavam pra toda família, ora eram
pastoras iguais as da igreja da vovó. Só lhe aborrecia quando Fernanda não
deixava ela ser quem queria. Sophie gostava muito de sua amiguinha, mas sabia
que ela tinha um gênio muito forte. Se fosse brincar de castelo, Sophie era o
príncipe e Fer era a linda princesa. Se fosse brincar de dupla musical, Sophie
era a cantora de menos destaque e Fer era a estrela. Se fosse brincar de filme,
Sophie era coadjuvante e Fer era sempre a principal.
No fundo a pequena Sophie, sim ela era pequeniníssima,
não se importava em agradar sua amiga. Mesmo em sua hiperatividade e molequice,
a menininha gostava de agradar a todos. Às vezes até demais, quando pegava as
coisas de sua irmã mais velha e distribuía para a turminha de sua escola. Sophie
tinha muitos amigos, dignos de sua tagarelice nata. Sempre onde estava havia
tumulto e muita gente junto. Todos queriam ficar do seu lado no recreio! Se não
me engano ela ainda tem a marca dos dentes da Fer quando a mesma brigou com
outra menina por ela no parquinho.
E era sempre assim, os parentes iam a sua casa,
trocavam poucas palavras com a menina e já queriam leva-la embora. Fosse também criança, adulto e até idoso,
Sophie tinha assunto pra tudo e todos. Não fazia pouco do que aprendia nos
telejornais, ela sabia das coisas. Em sua cabecinha a mil, maquinava mil ideias
e pensamentos. Outro dia perguntou a seu tio mais velho porque razão os anjos
voam e as pessoas não. E o homem meio careca, meio barbudo coçou a testa sem
saber responde-la. Foi então que ela orgulhou-se em explicar: “É porque a gente
é muito pesado! Tem osso, tem carne e tem coisa dentro da gente. E os anjos são
só alminhas leves e sem nada dentro...” – era a esperta. “Ainda por cima eles
tem asas que ajudam a ir beeeem mais altão, sabia?!”, e todos riam com sua
altivez.
Melhor que tudo para ela era comer bem.
Pequena e franzina ela disfarçava a comilança exagerada. Desde cedo soube que o
velho ditado “comer para poder crescer” era uma grande lorota! E quando sua mãe
dizia que ela era magra de ruim, ela pensava que não havia nada de “ruim” em comer
sem engordar a barriga. E ainda tinha quem achava que a pobre Sophie era
desnutrida por tanta magreza. Mas ser magra era sua melhor arma para correr
junto à garotada sem cansar.
Histórias de Sophie tem aos montes. Se ela
dominasse bem as letras aos nove anos já poderia ter um livro só seu. Mas vamos
deixar Sophie ser apenas uma pincelada, embora ela prefira e consiga ser um
quadro inteiro. E se quer saber se ela mudou com os anos, fique contente em
saber que não. Mesmo os empregos tentando ditar sua roupa, mesmo o sistema tentando
impor seu jeito de agir, mesmo as pessoas tentando sufocar sua incompatibilidade
entre todos, ela levava muito a sério o cargo que recebeu muito cedo de sua
mãe: A INVENTADEIRA DE MODA.
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