terça-feira, 3 de novembro de 2015

DISCURSO ABERTO


Parece que a cada dia que se passa nós vivemos uma sociedade mais mecânica do que humana. Instituições de todos os gêneros priorizam mais suas visões do que as pessoas que a envolvem. Criamos a banalidade e a futilidade como algo primordial e belo; construímos imagem do perfeito e do ideal e rejeitamos com afinco tudo (e todos) que se opuserem ao mesmo. Parece que o humanismo foi deixado de lado uma vez por todas. Já não se vê mais uma pessoa como um ser com sua trajetória de vida, suas histórias, seus traumas e medos – não passamos de números. Tudo parece intolerável, inaceitável, incabível! Quem dera nós fossemos visto como realmente somos. Criaturas frágeis, com altos e baixos, e um punhado de razões que nos fazem ser quem somos e escolher o que escolhemos. Quem dera um pequeno mal infrator fosse entendido como alguém que passou coisas que não passamos e que, em algum instante da sua vida, acreditou que o crime fosse a única saída, o único caminho para que as coisas dessem certo para ele (e é completamente banalizado, ao invés de receber ajuda, como todos nós precisamos). Inclusive, a vida faz exatamente isso conosco: ela nos cobra aquilo que não nos deu. O sem cuidados tem que cuidar, o sem atenção tem que ser atencioso, o não amado tem que expressar amor, o não reconhecido deve reconhecer, e assim uma cadeia é construída entre as pessoas, um muro que se torna cada vem mais alto. Alguns pensaram: “O que aconteceu com ela para escrever isso? Uma decepção? Uma revolta?”, e infelizmente os brasileiros ainda pensam que uma reflexão deve vir somente depois de um acontecimento enfático. E para você que pensa assim, eu revelo que é possível as pessoas pensarem sem que lhes seja exigido uma motivação social ou pessoal. O que ocorreu comigo? 23 anos de observação sobre as pessoas. Sim, os olhos também podem ver o invisível – é questão de exercício. As pessoas têm se tornado cada vez mais frias, mais vingativas, imperdoáveis, sem compaixão. “O sofredor merece seu sofrimento. Ele escolheu assim!”. Ninguém mais olha nos olhos dos outros, não se pergunta sobre o passado, o interno, aquilo que cada um guarda (esconde), porque simplesmente não há mais interesse em vidas. Ninguém mais gosta de encarar o real, aquilo que as TV’s não mostram, os cantores não cantam, a publicidade não vende. O sério é uma chatice; ter que abrir os olhos, se importar com o outro. É fato, nós falhamos nisso. A presidente falha nisso, mas não menos que eu, você, o Papa, o pastor, o empresário, e qualquer ser humano. Contudo, se você se prestou a abrir esse texto e ler até o fim, nós devemos comemorar porque ainda existem pessoas que se interessam mais por discursos chatos (mas sinceros) do que fotos felizes (mas totalmente falsas). Sim, são falsas! Todos nós sabemos que por trás de cada sorriso de cada mural existe alguém de verdade, que sai para o trabalho/faculdade, enfrenta suas correrias do dia a dia, e no final de tudo, ela deita em sua cama e pensa coisas que ninguém imagina. Luta contra seus próprios leões, suas dificuldades, suas tomadas de decisões, seus ressentimentos, suas fraquezas, suas dores solitárias. Vai soar estranho, mas é indelével: AS PESSOAS SÃO FRACAS! Pode acreditar! Por trás de cada um existe um preço, um limite, uma área onde eles certamente não aguentam e cedem. Sim, eles cedem, perdem o controle, a pose, a dignidade, o “correto”, o “belo”, o imaculado. Inclusive, penso que é neste momento em que as pessoas são quem sempre foram. Não existe uma mudança miraculosa neste tipo de processo. Já viu alguém se perder com o poder, mudar com a fama, descontrolar-se com uma “tentação da carne”? Isso se chama PESSOA, com um passado, presente e futuro – ela sempre existiu. E sinceramente, nós nunca vamos conseguir fazer algo que o próprio Deus, nosso Criador, já não tenha imaginado que faríamos, de bom ou de terrível. Contudo, eu creio que nunca foi plano do Mesmo fazer com que essa vastidão de humanos vivesse seu mundo isolado e fantasioso. Se assim fosse, Ele não teria requerido a multiplicação dessa espécie fascinante. É claro, somos fascinantes! Não do jeito que se pensa hoje, não da forma que as revistas de moda vendem um corpo “perfeito”, e nem do jeito que a MTV vislumbra uma vida confortável de fama. Nós somos fascinantes no nosso jeito de viver e pensar. Nas pequenas coisas que podemos fazer quando realmente queremos fazer. Aquilo que somos quando ninguém está olhando, quando não há aplauso ou gratificação, só você e você mesmo. Porque lá no fundo, talvez bem lá dentro, nós somos pessoas boas. E isso vai muito mais do quer curtir um vídeo de catástrofe ou uma foto de crianças com lepra para se dizer interessado no assunto. Tem a ver com o que fazemos pelos outros de verdade, a atitude acima do reconhecimento. O fazer sem que seja pedido, o estender de mão mais pré-histórico que a Terra já viu – isso sim é fascinante. Afinal, este é você, esta sou eu, aquele é o cara do estacionamento, do elevador, da portaria, do palco, do púlpito, do trono. É esta disposição de levantar e fazer de novo, de acreditar quando ninguém acredita, de lutar quando ninguém luta, de morrer fazendo o pouco para que um dia alguém possa fazer o muito. É assim que as grandes conquistas acontecem, são sementes. Hoje o meu texto não vai mudar a vida de ninguém. Você vai viver seu final de semana do mesmo jeito, fazer as mesmas coisas, ser você de sempre (talvez eu também). Porém, uma palavra foi lançada, e dizem que palavras não podem voltar atrás, então concluiremos que elas serão eternizadas, hoje, nesse Feed. No entanto, talvez possa ser feito, aqui dentro (mente e coração – porque trabalham juntos). Talvez eu senti de dizer isso para responder suas dúvidas, minhas dúvidas, ou até mesmo, sejam a resposta de alguém. E concluindo (finalmente), eu diria que alguém ainda acredita em nós, seja quem for. Acredita na nossa capacidade de fazer diferente e melhor para com o nosso semelhante. Mesmo sendo fracos, corruptíveis, falhos, malvados (ás vezes), ainda podemos ser fascinantes – não esqueça. Podemos ser e fazer muitas coisas boas enquanto vivos, contudo, somente se quisermos. 

terça-feira, 14 de abril de 2015

Calouros - Eles estão prontos?

Passar no vestibular é um dos grandes sonhos e objetivos de um adolescente de 17 anos nos dias de hoje. E para isso, não polpam esforços para alcançar essa meta: cursinhos, aulões, feriados em sala de aula, noites de insônia, noites de aula com sono, etc. Mas será mesmo que este sonho é o deles? Um jovem que cursa o terceiro ano se depara frequentemente com a pergunta: "Que curso você vai prestar no vestibular?", e mesmo sem muita idade, eles devem decidir qual a profissão que irá reger o resto de suas vidas. E de onde vêm isso? A maioria dos pais desses adolescente não tiveram uma oportunidade melhor de estudo como temos atualmente, podendo optar por vários tipos de bolsas e financiamentos. E muitos deles, exercem uma cobrança árdua na vida dessas crianças. Por serem totais fiadores da vida do filho, os pais muitas vezes, se sentem no direito de opinar na vida estudantil do mesmo - com a melhor das intenções, é claro. É prazer para qualquer pai e mãe ver seu filho aprovado em uma boa instituição de ensino, e dali 5 anos vê-lo levantando o canudo e pendurando o diploma de graduação na parede da sala. Assim sendo, a sociedade em sua totalidade obtém uma mesma linha de pensamento, e impõe suas cobranças rotineiras e determinantes, como a idade para de casar, para se ter filho, para comprar um carro, etc. Todas essas normas invisíveis não se pautam em leis jurídicas, no entanto, em leis pseudoéticas e morais de convívio. Mas até onde isso deve prosseguir? Afinal, onde está essa sociedade quando esses calouros inexperientes e imaturos ingressam realmente na vida acadêmica? Muitos desses adolescentes, se não a maioria, enfrentou uma jornada de cursinhos e aulas intensivas nas melhores e mais caras instituições de suas cidades, custeados pelos pais sonhadores citados acima, quando na verdade, poucos deles realmente frequentaram essas aulas. Fato que revolta em muito aqueles estudantes de baixa renda, que passaram a vida toda em colégios públicos e cursinho noturno pago com sua própria jornada de trabalho. Mas será mesmo que 17 anos seria a idade ideal para se escolher uma profissão? Segundo uma matéria da revista Abril (2011), a evasão escolar tem crescido no Brasil, e cerca de 900 mil estudantes  por ano não terminam a faculdade. “Suponhamos que um curso comece o ano com 50 alunos. A escola tem um gasto, que chamamos de fixo, que vai desde a contratação de professores até a compra de material para as aulas. Se no ano seguinte 10 alunos deixam de frequentar o curso, a faculdade acaba perdendo em torno de 100 mil reais de investimento. Agora multiplique isso aos 900 mil estudantes que desistem, são 9 milhões de reais de prejuízo”, afirma Oscar Hipólito, membro de Instituto Lobo. Isso ocorre por diversos fatores, e para os com pouca condição financeira, pode se atrelar com a dificuldade em manter os estudos por falta de recursos capitais. Ainda assim, muitos alunos desistem por falta de interesse com a matéria, método de ensino, ou insatisfação com o campus da faculdade. É notável o comportamento infantilizado dos alunos de primeiro período, a maioria recém saída do terceiro ano, por volta dos 18 anos incompletos. Falta seriedade na receptação de conteúdo dos professores, falta responsabilidade com prazos e datas para entregas de trabalhos, falta educação com a presença do professor na sala de aula, falta competência para desenvolver projetos bem elaborados, falta seriedade no comportamento em sala e por fim, falta a visão madura de estudar projetando a futura carreira. Não são poucos que ingressam em cursos por opinião de terceiros, e acabam fazendo o que não querem, logo, fazem o curso de qualquer jeito. Muitos não se formam, ou os que conquistam o diploma, se tornam aqueles profissionais medíocres e sem conteúdo, que passaram ano após ano com a piedade dos professores, e nas costas de alguns colegas de turma. Mas de quem é a culpa? Dos pais, da sociedade ou do aluno? É certo que todos tem grande porcentagem de responsabilidade no assunto, já que os três são partes diretas nesse resultado. Sendo assim, cabe aos três formarem meios de corrigir isso. As escolar deveriam apresentar, desde cedo, propostas para aguçarem os alunos a uma vida mais responsável no quesito profissional, os preparando para uma vida acadêmica e uma escolha no futuro. Afinal, faculdade não é passaporte para uma vida bem sucedida. Muitos conquistam cargos elevados nas empresas sem terem diploma de graduação algum, mas por simplesmente fazerem o que gostam, e fazerem com excelência. Cabe ao jovem a decisão de fazer ou não faculdade aos 17 anos,  em que momento entrará em uma, e qual o curso a ser prestado. Isso já geraria um peso de responsabilidade a eles. Os pais deveriam ter a consciência de que o futuro do filho NÃO é a chance do pai realizar seu sonho frustrado do passado. Aquilo que parece bom aos olhos dos pais, isto é, que seja uma profissão rentável e com vasto mercado de trabalho, pode não encaixar com a personalidade do adolescente, e fazer com que este perca muito tempo e dinheiro até perceber isso - se é que pode. E por fim, os jovens deveriam ser mais conscientes de suas escolhas, o que se torna muito difícil, pois o mundo universitário é regado de obstáculos para se ingressar, e acaba sobrando apenas para aqueles que tem financiadores em suas vidas: pais, avós, tios, ou qualquer pessoa que banque sua jornada pré-acadêmica e acadêmica. Fica difícil criar maturidade e responsabilidade quando se cresce cercado de  pessoas que irão tomar decisões e escolhas árduas para você, e ainda por cima, custearem tudo o que virá pela frente. É fundamental para o jovem que ele estude, mas também que ele trabalhe. O trabalho é uma das experiências da vida do ser humano que mais exige disciplina e determinação, e se torna essencial para a vida do adolescente passar por isso - segundo a lei orienta, certamente. Tendo isso, não podemos esperar nada mais do que ótimas notícias sobre a redução da evasão escolar, e de um mercado de trabalho cheio de profissionais sérios e qualificados. Afinal, isso é realmente ser bem sucedido: fazer o que gosta, e da melhor forma. Jovem, leve a sério seu papel na sociedade!

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O Peru




  Banheiros limpos, quartos arrumados, sala aspirada, vidros polidos, quintal varrido, sobremesa na geladeira, peru no forno... Meu Deus! O Peru! Dona Saúde não sossegava até que tudo estivesse completamente de acordo. Era planta para regar, feira pra fazer, roupa para passar e guardar, armários para organizar, e tudo antes de as visitas do norte chegarem.
   Todo ano era isso: a família toda reunida na casa de dona Saúde. Pudera! Era a maior casa de todos os parentes. Mas não pensem que dona Saúde era dondoca, nada disso. Era uma senhora trabalhadora desde de a mocidade em casa de família, para limpar e cuidar de tudo. Cresceu na arrumação, e da arrumação conquistou seu pedacinho de chão, e depois, o sobradão no quarteirão da Rua da Paz. Tremendo orgulho dela e do marido, que também dava duro nas encanações desde que seu pai era vivo para lhe ensinar.   

   Dona Saúde gostava de ver a limpeza tinir onde quer que passasse. Já trabalhou de camareira em hotel de luxo e até em cortiço; em restaurante cinco estrelas e em padaria de bairro simples; em bancos e até em lotérica de bicheiro. O fato era que ela não dispensava serviço duro quando o assunto era encarar a sujeira. Menina nova fazia vergonha de sua força e disposição na esfregação. Dobrava os joelhos ao lado do balde e saía a tirar as manchas, fosse como fosse.  

   A campainha tocou lá de fora. Chegaram! E lá entravam a irmã mais velha, o cunhado falante, os três sobrinhos em idade de escadinha, sendo o mais velho da idade de onze anos. Com o peru ainda marinando, a anfitriã puxava cadeiras pela sala para todos se acomodarem, exceto as crianças, que já haviam subido para a sala de tevê, onde fariam a maior algazarra já prevista.
   E logo iniciava-se assunto: o primeiro dente mole do sobrinho mais novo, a nota baixa em matemática do mais velho, a troca de carro do cunhado, e as velhas dores nas varizes da irmã. Ouvia tudo com um interesse santificado, e depressa corria para espiar o peru assando. Não demorava, e mais pessoas chegavam: a irmã do meio, o cunhado cristão, o sobrinho mais velho com a nova namorada loira, a sobrinha gordinha e mal criada, e o poodle de latido ardido que nunca ficava em casa longe deles. 
   Daí era aquilo: o pessoal que já estava sentado se levantava para cumprimentar os que haviam chego. Estralo de beijos para as mulheres e barulho de palmas nas saudações masculinas. O povo chegava para lá nos sofás e mais cadeiras eram incluídas na roda. O casalzinho jovem sentou-se num canto desapercebido para cochicharem suas malícias da idade, enquanto os mais velhos mimavam o cão agitado e célebre no meio da sala. A conversa ia ficando mais alta a cada momento: era a novidade da casa de praia da irmã mais nova, o convite do cunhado para pregar em uma igreja fora da cidade, a dieta rígida da filha fofinha, e o casalzinho que já pensava em casar – pelos menos, era o que o pai queria que acontecesse logo, visto o fogo dos dois.

    Dona Saúde ouvia tudo com ar de novidade e carisma, e com um pé na sala e outra na cozinha, dava tenção a suas visitas. Mais uma vez a campainha. Chegaram os vizinhos de dona Saúde. A senhora Marta, que também era madrinha de seus filhos, já era conhecida de todos. A novidade era o marido novo, ar de gringo, metido a muambeiro do Paraguai. E a cena de outrora se repetiu mais uma vez: o casal desfilou diante de todos para os cumprimentos ao som ardido do poodle, e logo tomaram lugar perto do casalzinho, que sossegaram um pouco os chamegos escondidos.

   O cheiro do peru atiçou a fome de todos quando a anfitriã o retirou do forno. Seu marido, que havia acabado de chegar do trabalho em plena véspera de natal, passou por todos com acenos rápidos e logo subiu para um banho deveras necessário. As filhas de dona Saúde, que em todo esse tempo se encontravam diante de espelhos, guarda-roupas e secadores, desceram para juntarem-se aos outros. Duas meninas-moças: Júlia e Gabriela, as duas em fase de se preocuparem mais com os cabelos do que com os afazeres da casa. A pobre Saúde já nem reclamava mais com elas, era perda de tempo. Nessa idade elas não ouviam nada do que lhes era falado, e qualquer assunto que não as agradassem, eram duas semanas trancadas no quarto – deixe estar.

   E mais uma vez a campainha tocou, mas desta vez uma das filhas, milagrosamente, se propôs a atender acompanhada do cachorro sorrateiro. Talvez por influência do velho e famigerado espirito-natalino. Era a tia do meio com o bebê recém-nascido nos braços. Quando chegou na sala, a parentada pulou nela como urubus à carcaça, exceto o casalzinho no canto do sofá, que aproveitaram a distração para trocarem fungadas do pescoço. Todos queriam ver o novo membro da família Souza pela primeira vez. O poodle ciumento, latia e latia para o bebê, que nada entendia do que estava acontecendo. A mãe da criança já estava habituada a ter a atenção roubada por seu filho, mas não havia importância, pois ele era realmente importante para ela, que era a única irmã solteira da família.

       Assim que o senhor Manoel, anfitrião da casa, desceu de banho tomado e de camisa nova, o peru foi servido na mesa de jantar. Alguém deu um berro para as crianças descerem para comer, e aos poucos todos foram se encaixando em volta da mesa de seis cadeiras, com mais duas colocadas nas pontas para caber todos. As crianças fizeram seus pratos e sentaram-se no tapete da sala com o tótó, os mais velhos ficaram à mesa mesmo, e os jovens foram para o sofá. Os mais velhos riam e tomavam vinho suave, exceto o cunhado cristão e sua mulher, eles tomavam coca. As crianças lambuzavam os beiços de suco artificial de laranja, e os jovens iam de espumante de maça nas taças.

   Os mais velhos falavam dos outros parentes, dos que faleceram, dos que casaram, dos que se separaram, dos que empobreceram, e dos que enriqueceram e sumiram. Os jovens falavam das novas marcas de smarthphones e tiravam fotos com as taças para postarem em suas redes sociais. E as crianças, as crianças eram apenas crianças. Comiam de boca aberta, davam porções da comida ao cachorro, e amontoavam-se uns nos outros. O bebê chorava baixinho de vez em ora, apenas para querer ser lembrado nos braços da mãe, e o peru, o peru já estava todo esfolado no centro da mesa.
     Depois da sobremesa de chocolate, onde o tapete de dona Saúde adorou provar um pouco por bondade das crianças, todos juntaram seus pratos e copos e deram-se por satisfeitos. As mulheres foram para a cozinha para ajudar na louça, os homens sentaram-se para ver o que conseguiam achar na tevê, as crianças voltaram para a sala no andar de cima, as filhas de dona Saúde e a prima gordinha foram para o quarto conversarem, e o casalzinho ficou na garagem para ver os poucos fogos de artifício que estouravam-se pelo bairro, já que todos estavam passando o natal nas praias do estado.

   Assim que terminaram a primeira arrumação, a vizinha-comadre de dona Saúde voltou para sua casa com o marido, mas o trabalho ainda não tinha acabado. A família toda dormiria ali naquela noite. E dai foi aquele vuco-vuco de colchões e cobertores sendo levados pelos quartos e pela sala para acomodação de todos. As meninas dormiriam todas no quarto das filhas de Saúde, isto é, Julia, Gabriela, a tia mais nova com o bebê, a prima gordinha e a namorada nova de seu irmão, o que deixou o casalzinho um tanto insatisfeito - mas paciência. Os casais dormiriam nos quartos de hóspedes, e as crianças dormiriam junto com o poodle hiperativo e o namoradinho abandonado no andar debaixo.
   Levou mais de três horas para que todos se ajeitassem e pegassem no sono. Quando dona Saúde deitou-se em sua cama, assustou-se com a hora: quatro e quinze da madrugada. Como passou rápido! Dali até a manhã seria apenas um cochilo para a preparação do café da manhã. Dito e feito: dona Saúde mal dormiu. Logo antes de amanhecer, o cheiro de café passado já enchia o sobradão. Aos poucos, cada um foi despertado com o aroma e com o barulho do bebê e do poodle. Mesmo com a fartura da noite passada, todos se empanturraram com os quitutes, bolos e pães de Saúde.

   E assim toda a rotina se repetia: as refeições, as arrumações, as conversas, as refeições, as arrumações, e as sonecas... O povo ficou ali por uma semana, o que escureceu ainda mais as olheiras de dona Saúde, que caía de sono pelos cantos quando ninguém notava. Porém, o grande dia chegou, todos iriam embora. De novo aquela confusão de malas sendo levadas para os carros, crianças correndo pela casa, potes sendo cheias de brevidades para a viagem, o bebê chorando, o poodle arrastando os chinelos pelos cantos, os colchões e cobertores voltando para seus lugares.

   No portão foi aquela agitação e conversa alta. Todos se abraçando e desejando bom retorno, além de marcarem outro dia para se reunirem. Aos poucos os carros iam se enchendo de pessoas e coisas, e tomavam seu caminho, até que ficassem somente os quatro em frente ao sobradão: mãe, pai, e as filhas. O senhor Manoel foi direto para seu jogo de futebol na televisão, Júlia pegou seu notebook e voltou para o quarto, Grabriela foi tomar um banho para escovar o cabelo para o dia seguinte, e dona Saúde... Dona Saúde sentou-se saudosa pela primeira vez naquela semana. Esticou as pernas na cadeira e deu uma olhada no inchaço em que elas se encontravam, motivo da correria frenética das visitas. Bebericou mais um pouco de sua xícara de café deixada há pouco e olhou para a casa vazia e silenciosa.
   Levaria mais de uma semana para casa voltar ao seu estado real de limpeza, mas dona Saúde estava feliz. Havia se desgastado tanto! Noites mal dormidas, dinheiro e mais dinheiro em mercado para dar o que comer aquele povo voraz, horas de frente ao fogão em cada preparo, roupas e mais roupas lavadas... Mas no fundo, ela sentia prazer em ter todas estas coisas para fazer. E mesmo sentindo o corpo dolorido, como se um trem a tivesse esmagado, faria tudo aquilo de novo. Levantou para levar as louças à pia, e enquanto as lavava mirando a janela da cozinha, sentiu falta de toda aquela gente.  




   Minhocas e
  Macarrões


   Era uma tarde de Sol quando a dona Cláudia ganhou os dois: Ketlyn e Chico. Ketlyn era toda amarela clarinho, de uma delicadeza quase inglesa, como seu nome dizia. Chico já era mais robusto, com tons mesclados de preto e branco que lembravam uma galinha d’angola. Mas não era galo, era pato. Os dois vieram de pressa sem muito destino para o quintal da dona, um cantinho de entulho ao lado da casa dos fundos. Quando chegaram no pedaço, a dona Cláudia tratou de arranjar uma grande bacia com água para os bichinhos se banharem tranquilamente naquele verão. A bacia não era lá das maiores, afinal era uma bacia e não uma piscina. Os dois nadavam pertinho um do outro, mergulhavam o bico no fundo e estendiam o pescoço deixando a água escorrer no resto do corpinho oviparo.  Eram muito unidos. Quando a dona olhava pela gradezinha, lá estavam os dois lado a lado remexendo as cabeças inquietas.

   Os netos de dona Cláudia tratavam os patos como cães. Puxavam-lhe os rabos, festavam as penas das cabecinhas e saiam correndo pelo quintal. Os pobres bichos enfurecidos perseguiam as crianças com as asas batendo no chão, e quando alcançavam as barras das caças faziam um estrago. Traquinagens à parte, os pequenos gostavam daqueles patos. Nas tardes fora da escola, colocavam-se a caçar minhocas pelo quintal para alimentar os bichos. Um dia levaram horas na tarefa até encherem um vidro todinho de minhocas gordinhas e suculentas, mas assim que viraram o vidro no chão as danadas enrolaram-se uma nas outras até virarem um emaranhado só, então Chico abocanhou tudo em uma bicada só e Ketlyn ficou só olhando a cena de papo vazio.

   Além de minhocas, o prato favorito dessas aves era macarrão, devido a grande semelhança na aparência e textura. Assim que dona Cláudia já ia guardando as panelas do almoço, a garotada agarrava a sobra e levava para o quintal. Desta vez já haviam aprendido a lição, primeiro serviam Francisco e depois Ketlyn, e cuidavam para que um não roubasse a comida do outro.
   Porém um dia, também belo e ensolarado, as crianças foram até o cantinho dos patos. Olharam pela grade enquanto se aproximavam, e estranharam o fato de Chico estar sentado sozinho à frente. Com olhar furtivo eles perceberam Ketlyn sentada sozinha logo atrás em sua casinha feita com um sofá velho de dona Cláudia. A fêmea estava com os olhinhos fechados e com o corpinho todo encolhido, e as crianças alegres logo pensaram que talvez ela estivesse botando ovos. Chegaram mais perto, mas Ketlyn não acordou. Uma das crianças pôs a mão de leve em seu corpo, fazendo com que ele caísse para o lado, duro, gélido e sem vida.

     As crianças se olharam assustadas, e rapidamente levaram a pata para fora. Dona Cláudia logo foi chamada para tomar conhecimento do ocorrido. Enterraram a bichinha no quintal mesmo, e todos lamentaram a perda. Não mais que Chico, é claro.  O pobre pato mudou da água para o vinagre, sim, pois uma amargura tomou conta daquela ave. A bacia cheia d’água já não lhe fazia a alegria, ficava ali parada só juntando inseto e sujeira, então a retiraram de lá. O pato entristeceu de um jeito que até parecia gente. Já não ficava mais sentado de frente a grade, mas achou um pequeno buraco no assoalho da casa e enfiou-se por lá. Custava muito que ele saísse. Nem minhocas gordinhas, nem macarrão fresquinho o convenciam de aparecer para fora. De vez em quando uma das crianças se enfiava no buraco para vê-lo, ou então trazê-lo um pouco para fora. 

   A verdade é que Chico já não era o mesmo. Aguentou mais um ano de vida, cresceu, mas não viveu. Era um belo pato, de bico longo, asas grandes, pescoço firme e penas mescladas, porém já não tinha a vivacidade de antes, enquanto sua bela companheira vivia. Não se soube o motivo da morte dela. Talvez algo estranho que comera, talvez uma pisada sem querer na hora de brincar com as crianças, talvez uma doença que só o veterinários saberiam. Mas se foi, e era só o que sabiam. Não demorou até que Chico se juntasse a ela, em sua mesma covinha.

   Houve um dia que as crianças deram por falta dele. Já fazia tempo que não saía, mesmo quando chamavam incessantemente na beira do buraco do assoalho. Então elas entraram lá de novo, e o puxaram gelado para fora. Desta vez a perda não foi tanto, já que o pobre bicho tinha se entregado aos poucos, e todos o perdiam aos poucos em cada dia. Foi melhor assim, todos pensaram. Pois aí ele não sofreria mais sua solidão. Na cabeça das crianças havia um céu feito para os animais. Talvez sem crianças para lhes importunar e aborrecer... Talvez. E lá os dois estariam agora, comendo minhocas bem mais gordinhas, e pilhas de macarrões bem mais fresquinhos.



  I-Phonso



   Afonso sempre amou mais a tecnologia do que a qualquer outra coisa. Mais ainda do que sua própria namorada - motivo do qual fez dela ex em apenas dois meses. Pudera! Afonso não largava seus apetrechos tecnológicos por onde quer que fosse. Era tablete, smarthphone, notebook, PSP, ou derivados, ele nunca estava sem eles. Corria mais atrás de tomadas do que de garotas, e isso sempre foi assim. Seu apelido entre os amigos, poucos que tinha, era I-Phonso, e ele até achava graça nisso.
  Trabalhava sem parar até sanar seus vícios irrefutáveis de alcançar o avanço da tecnologia. Trocava de aparelho celular a cada quatro meses, e quando ouvia que um novo saiu em alguma parte do mundo, ele vasculhava terra e céus para conhecer o bendito aparelho. Sabia tudo sobre todas as marcas, preços, qualidades, pixels, memórias, baterias, softwares, invenção, renovação, e o que mais tivesse a ver com isso. Seu quarto era cercado de bugigangas eletrônicas, revistas e cd’s sobre o assunto. Era um amante incondicional!
   O que ele fazia com seus antigos aparelhos? Bom, no começo ele guardava todos como preciosidades, até perceber que não havia mais lugar para tanta sucata, quer dizer, nem tão sucata assim. Depois ele tentou passar os aparelhos para familiares próximos, como sua mãe Zélia, que odiou a invenção do tal touchscream e se negou a continuar trocando de celulares com a mesma velocidade do filho. “Isso não é coisa de gente normal”, dizia ela. Sem falar que a pobre senhora também acabava cheia de aparelhos sobressalentes pela casa toda, somente porque seu filho não queria se desfazer de vez daqueles “trécos”. 
   Foi depois de muito tempo e com muito custo que I-Phonso, digo, Afonso aprendeu a se divorciar de seus antigos pertences eletrônicos. Experimentou vender um mouse usado, depois um fone de ouvido, uma caixa de som, e assim ele foi vendo aquele velho quarto entulhado se esvaziar. Quando vendia alguma coisa, sentia uma estranha sensação de indiferença, e assustou-se com isso. No começo era estranho, mas ao poucos passou a ter prazer em fazê-lo. Sim, pois sua vida, que até então se limitava a relações sociais virtuais e superficiais, ganhou mais atratividade com as ligações e encontros com os compradores.
   Conhecia muitas pessoas a cada venda, e com algum lucro entrando, lhe ocorreu a ideia de abrir um site de vendas. Dona Zélia, que já notara a melhora de comportamento do filho tímido, reprimiu a ideia e sugeriu que a loja existisse “de verdade”, lá na garagem. Assim o filho veria pessoas “de verdade” e levantaria a bunda de frente daquele computador. Afonso sentiu medo no começo, mas com a mãe lhe ajudando a separar as peças e a organizar a garagem com as estantes transbordando, ele criou coragem de mandar fazer uma placa: VENDA E REVENDA DE ELETRÕNICOS.
   Foi um sucesso desde o primeiro mês. Afonso descobriu que havia muitas outras pessoas como ele, cheias de coisas acumuladas e sem uso, então não se sentiu mais sozinho. Os clientes levavam aparelhos levemente danificados para verem o que conseguiam, e como Afonso sempre foi metido a entendido do assunto, podia consertar boa parte deles. Os que ele não dava cabo do serviço, mandava para um novo amigo que fez na loja, e os dois dividiam o lucro. Com os negócios crescendo, a loja ficou pequena e mudou-se para um local mais centralizado. Àquela altura sua obsessão pelos aparelhos já havia sido sanada pelas descobertas que fazia em sua loja.
   Com tantas mudanças em sua vida, até a Lurdinha, sua ex-namorada, resolveu procura-lo novamente quando soube. A moça quase caiu de costas ao ver que o rapaz estava mais magro, ativo, comunicativo, e ... belo. Devido aos fatos, não demorou muito para que eles reatassem. A volta foi uma mão na roda para Afonso, que além de sentir falta da garota, também estava precisando muito de uma ajudante no batente.
   Lurdinha tratou logo de arranjar um nome decente para o estabelecimento, quer dizer, talvez não tão decente assim: I-PHONSO ELETRÕNICOS. Também organizou a papelada para a aquisição do CNPJ, além de dar um bom toque feminino no espaço, que agora também vendia peças novinhas em folha.
   Quando a loja fez um ano de aniversário os dois noivaram. Dali três meses Afonso começou, enfim, a tão sonhada faculdade de Tecnologia de Informática. Na verdade, este sonho era mais da senhora Zélia do que do próprio rapaz, mas vinha muito a calhar com a ampliação de visão empresarial. Depois que casaram, os dois deram um duro danado nas vendas até a situação ter se estabilizado. E quando pensaram que já estavam tranquilos, o senhor Afonso virou papai de gêmeos: Alice e Luigi.
   Com a maternidade de primeira viagem, Lurdinha deixou os negócios para cuidar dos pequenos enquanto Afonso treinava novos funcionários de vendas. A vovó Zélia dava uma mão e às vezes até duas para ajudar o filho com a loja e com as tarefas da paternidade. No fundo a velhinha não imaginava o quanto o filho havia mudado tanto para melhor. Quem diria que aqueles “trécos” tinham sido o mal e ao mesmo tempo o bem para o filho. “Acho que ele se achou na vida”, contava às vizinhas com o peito cheio de orgulho. Não que ela tivesse mudado sua ideia sobre a tecnologia, e nem que tivesse dominado o touchscream, mas ao tempo que aquelas bugigangas ia mudando pra melhor, a vida de todos ia seguindo junto também. E mesmo que sua memória não fosse tão boa como aqueles “trécos”, ela iria registrar cada segundo de sua bela família: Afonso, Lurdinha, I-lice e L-oading.







 A inventadeira de moda



   Seu nome era Sophie, e ela bem sabia que não era um nome comum.
Irritava-se toda vez que trocavam as letras: “Oi, Sofia!” “Como vai Sôufi?”, porém no fundo ela adorava ter um nome diferente. Porque na verdade ser diferente era o que ela era de fato.
   Suas roupas nunca combinavam. Usava somente aquilo que lhe parecia confortável, ainda que um par fosse de bolinhas e outro fosse xadrez, ainda que fosse frio e o sapato fosse aberto, ainda que estivesse calor e a blusa de lã fosse extrovertidamente colorida, ainda que pela manhã não passasse a escova nos cabelos, mas que conseguisse se parecer com aquela moça sorridente do pôster colado na parede de sua irmã mais velha, uma tal de Janis Joplin. Nome este dado também a sua boneca favorita.

    Na casa todos já conheciam seu tipo. Era só aparecer algo incomum e todos cantarolavam: “Coisas de Sophie...”. Um tubo de cola bastão com uma rodela entre a tampa virava um mexicano, o espelho embaçado depois do banho virava diário, um chicletes mascado se tornava uma lesma colada na prede detrás do sofá, as barras cortadas de suas calças velhas viravam roupas para seu cachorro Tigrão, as escovas de dente na pia conversavam viradas umas para as outras, e a casa toda se tornava alvo de sua imaginação.
   Quando percebia estar sozinha em casa corria para a cozinha. Adora brincar de “misturinha”! Procurava todos os grãos dos potes e os misturava em um pequeno copo. Também assim fazia com todos os pós, cremes e líquidos. E para quê? Na verdade para nada! Ela ficava curiosa para saber qual seriam a textura e o cheiro que todas aquelas misturas dariam, e normalmente era uma aparência gosmenta e malcheirosa. Claro que Dona Regina não poderia nem sonhar que essas traquinagens aconteciam em sua ausência, ela não suportava a ideia de brincadeiras com comida, ainda mais no preço que se achavam nos supermercados, e dizia: “Você acha que sou sócio do mercado, menina?”.

   O fato era que Sophie nunca foi uma criança comum. Ela não ria dos desenhos animados, afinal ver um bichinho se machucar não lhe dava ares de graça. Coisa que gostava eram telejornais e noticiários, comerciais nem se fala! Sophie era muito observadora e inteligente, embora a matemática lhe dissesse o contrário. Matemática com ela era um problema muito sério. Os números lhe torciam os miolos, e as fórmulas eram russo puro. Além disso, achava inaceitável que só porque alguém disse que A + B é igual a C, todos tivessem que achar a mesma coisa. Na tv aprendia várias palavras difíceis e saia por ai a repetir. Sentava no sofá com seu dicionário velho e saboreava novas formas de falar. Na sua pouca idade já falava coisas que outros amigos não sabiam nem escrever. Sophie amava escrever.

   Era por isso que ela amava as artes, de todas as formas. Fosse história, fosse poesia, fosse desenho ou pintura, fosse dança ou fosse música, ela podia sempre reinventar! Quando ia à casa de sua amiga Fernanda usava muito esse seu lado artístico. Em meio aos grandes cômodos e pátios do casarão rico elas corriam e imaginavam coisas. Ora eram donas de casas cuidadoras de filhos, ora eram médicas veterinárias correndo atrás do Tigrão, ora eram cantoras e atrizes que se apresentavam pra toda família, ora eram pastoras iguais as da igreja da vovó. Só lhe aborrecia quando Fernanda não deixava ela ser quem queria. Sophie gostava muito de sua amiguinha, mas sabia que ela tinha um gênio muito forte. Se fosse brincar de castelo, Sophie era o príncipe e Fer era a linda princesa. Se fosse brincar de dupla musical, Sophie era a cantora de menos destaque e Fer era a estrela. Se fosse brincar de filme, Sophie era coadjuvante e Fer era sempre a principal.

   No fundo a pequena Sophie, sim ela era pequeniníssima, não se importava em agradar sua amiga. Mesmo em sua hiperatividade e molequice, a menininha gostava de agradar a todos. Às vezes até demais, quando pegava as coisas de sua irmã mais velha e distribuía para a turminha de sua escola. Sophie tinha muitos amigos, dignos de sua tagarelice nata. Sempre onde estava havia tumulto e muita gente junto. Todos queriam ficar do seu lado no recreio! Se não me engano ela ainda tem a marca dos dentes da Fer quando a mesma brigou com outra menina por ela no parquinho.

   E era sempre assim, os parentes iam a sua casa, trocavam poucas palavras com a menina e já queriam leva-la embora.  Fosse também criança, adulto e até idoso, Sophie tinha assunto pra tudo e todos. Não fazia pouco do que aprendia nos telejornais, ela sabia das coisas. Em sua cabecinha a mil, maquinava mil ideias e pensamentos. Outro dia perguntou a seu tio mais velho porque razão os anjos voam e as pessoas não. E o homem meio careca, meio barbudo coçou a testa sem saber responde-la. Foi então que ela orgulhou-se em explicar: “É porque a gente é muito pesado! Tem osso, tem carne e tem coisa dentro da gente. E os anjos são só alminhas leves e sem nada dentro...” – era a esperta. “Ainda por cima eles tem asas que ajudam a ir beeeem mais altão, sabia?!”, e todos riam com sua altivez.



   Melhor que tudo para ela era comer bem. Pequena e franzina ela disfarçava a comilança exagerada. Desde cedo soube que o velho ditado “comer para poder crescer” era uma grande lorota! E quando sua mãe dizia que ela era magra de ruim, ela pensava que não havia nada de “ruim” em comer sem engordar a barriga. E ainda tinha quem achava que a pobre Sophie era desnutrida por tanta magreza. Mas ser magra era sua melhor arma para correr junto à garotada sem cansar. 

   Histórias de Sophie tem aos montes. Se ela dominasse bem as letras aos nove anos já poderia ter um livro só seu. Mas vamos deixar Sophie ser apenas uma pincelada, embora ela prefira e consiga ser um quadro inteiro. E se quer saber se ela mudou com os anos, fique contente em saber que não. Mesmo os empregos tentando ditar sua roupa, mesmo o sistema tentando impor seu jeito de agir, mesmo as pessoas tentando sufocar sua incompatibilidade entre todos, ela levava muito a sério o cargo que recebeu muito cedo de sua mãe: A INVENTADEIRA DE MODA.